quinta-feira, outubro 26, 2006

TRAVESSIA A CAVALO NA BALSA

Era final da década de 50, a vida no Morro Grande era demasiadamente pacata, passávamos dias sem ver a presença de uma pessoa estranha a família. Na divisa de nosso sítio havia uma estrada, mas dificilmente se via alguém passar por ela. Algumas vezes se via algum caminhante que ia a direção do Porto dos Mendes. A estrada, mais adiante, do outro lado do morro que ligava a Cidade e o Porto passava a velha Jardineira pela manhã indo para a cidade e a tardezinha ouvia se o ronco do motor cansado voltando. Um dia ou outro ouvia se o ronco do motor de algum caminhão ou a caminhonete “pick up William” de um fazendeiro lá da beira do rio que ia ou voltava da cidade. A noite sim se via, com mais freqüência, a luz ao longe, no pé da serra os carros que vinham da Rodovia Fernão Dias em direção a cidade de Boa Esperança. Do mais não se ouvia nem o barulho de avião cortando os céus. Mas a natureza era pródiga em pássaros e grande variedade de outros animais que quebravam a monotonia do lugar com seus cantos e sons específicos.
Raramente íamos ao povoado de Ribeirão ou Porto dos Mendes, a não ser quando meu pai precisava comprar alguma coisa na venda ou quando me mandava ir vender hortaliças no povoado - jiló, tomate, repolho ou outro produto de nosso sítio.
Logo de manha papai preparava duas *caçambas cheias dos produtos a serem vendidos, colocava na sela do cavalo e não esquecia da medida, uma lata de óleo vazia, para medir o produto. Acontece que eu sempre queria agradar aos fregueses e colocava sempre um pouco mais que a unidade da medida padrão (o litro). Quando chegava a casa sempre era questionado pelo resultado da venda que era sempre menos do previsto. Explicava que eu sempre colocava um pouco mais da medida para cativar as pessoas para de outras vezes comprarem de mim e não de outros. Lembro que isso justificava um pouco, mas não agradava totalmente papai.
O povoado era pequeno, muita gente possuía a sua própria horta, o que dificultava a venda, por isso às vezes ia até o povoado do Sapecado que ficava na outra margem do Rio Grande. Mas papai alertava sempre que eu deveria deixar o cavalo do lado de cá, no Porto para não ter que pagar duas passagens na Balsa.
Mas certa vez resolvi ir ao Sapecado a cavalo, era mais cômodo, tomei a Balsa e embarquei o cavalo também pagando duas passagens, papai não precisaria saber, o dia parecia estar produtivo já havia vendido boa parte e sabia que lá no Sapecado venderia o restante. Não havia o que se preocupar. Mas papai não poderia saber, pois certamente haveria uma boa bronca. Atravessei o rio com o meu cavalo e lá fui eu pelas poucas ruas que havia todo imponente levando meus produtos e oferecendo de casa em casa.
Qual não foi a minha surpresa ao passar pela praça, em frente à Capela vejo surpreso o tio Pedrinho lá aguardando a hora do horário da Balsa para o Porto dos Mendes. Não pude deixar de mostrar meu contentamento ao ver meu tio por lá, mas por outro lado subiu um arrepio de medo do que poderia acontecer se ele se encontrasse com meu pai e falasse que me encontrou no Sapecado e a cavalo! O que tivesse que acontecer aconteceria, nada mais poderia fazer e passei o resto do meu tempo ao lado do meu tio até a travessia do rio.
Ao final da tarde, já a noitinha, cheguei a casa e encontrei papai e mamãe aflitos querendo saber como foi o dia e porque chegara tão tarde. Contei que havia vendido tudo e que havia encontrado o tio Pedrinho lá no Sapecado e que havíamos atravessado a Balsa juntos, depois passei para ver a tia e por isso a demora.
Nem queria imaginar se o tio Pedrinho viesse a contar-lhe sobre o cavalo. Porém sabia que assim que meu pai estivesse com ele isso seria inevitável. A verdade é que comecei a sofrer antecipadamente. Certo dia meu pai esteve no Porto e quando voltou veio direto ralhar comigo. Ele não costuma bater em mim, nem nos meus irmãos, mas só o modo que falava ralhando era o suficiente para ficar muito triste e até chorar. Vez ou outra, em caso mais grave levava-se uma palmada ou um puxão de orelha. Não mais que isso.
Mas atravessar a balsa com o cavalo nunca mais! Voltei mais vezes em busca da freguesia lá para os lados do Sapecado, mas sempre deixando o cavalo amarrado ao bambuzal que fica ao lado da base da Balsa. E jamais esqueci do encontro inesperado com meu tio.
Depois de quase cincoenta anos, outro dia destes, falei com meu tio sobre essa passagem, ele sorriu e com sentimento de culpa disse-me: - Uai, você me desculpa então, eu não sabia que você teria problemas.

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CORUJA

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Meu elemento xamânico.